quinta-feira, 6 de maio de 2010

Sobre Águias III: Como uma Águia virou Galinha

Bom, depois das duas primeiras partes introdutórias, falando sobre algumas características interessantes das Águias, vamos para o que realmente importa. Pra mim, essa é a porção que mais ministra a nós, que nos ajuda a reconhecer nossa identidade em Cristo e o quanto essa identidade tem sido roubada de nós enquanto vivemos nesse mundo, o quanto temos sido enganados e acreditado em mentiras sobre quem somos e o que estamos fazendo aqui. Que, através desse texto, possamos parar e pensar se temos sido peregrinos, estrangeiros na terra, ou se resolvemos viver como moradoras definitivos daqui. Relembre de onde você é, onde você deve viver, para que você foi criado, independente de como ou onde você foi ou tem sido criado. Que renasça em nós as Águias que somos.

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3. Como uma águia virou galinha

"Durante o tempo de crescimento no ninho podem ocorrer acidentes. Uma rocha se desprende carregando tudo consigo, ninho e filhotes. Pois assim, certa feita, infelizmente, ocorreu. E aqui começa nossa história.

Numa tarde sonolenta de verão, voltava um criador de cabras, do alto de uma planura verde, na floresta atlântica do norte do estado do Rio de Janeiro. Ao pé da montanha por onde passava, encontrou, de repente, um ninho de águias todo estraçalhado. Semicoberta de gravetos, uma jovem águia, ferida na cabeça. Parecia morta, toda ensanguentada. Era uma águia rara, a águia-harpia brasileira, ameaçada de extinção.

Recolheu-a com cuidado e pensou:

 - Vou levá-la ao meu vizinho que é um amante de pássaros. Gosta de empalhar gaviões, garças, patos selvagens e veados. Talvez ele queira empalhar este filhote de águia!

E assim fez, pois o caminho passava junto à casa do empalhador. Este acolheu alegremente o criador de cabras. Ficou admirado por se tratar de uma águia-harpia, rara naquela região. Encheu-se de pena dela. Também ele supôs que estivesse morta. Colocou-a ternamente debaixo de uma cesta.

Amanhã vou empalhá-la, matutou resignadamente consigo mesmo. Embora pequena, vai ser uma ave soberba depois de empalhada, enchendo de grandeza qualquer sala!

No dia seguinte, teve grata surpresa. Ao retirar o cesto, percebeu que a águia se mexia levemente. As garras, ainda novas, estavam fechadas. Havia feridas em várias partes do corpo. A águia estava cega.

Novamente sentiu pena da jovem águia. Por misericórdia quase quis sacrificá-la. Pensando com seus botões, encontrava até razões para isso: "Elas matam muitos animais pequenos, especialmente preguiças e macacos. Desequilibram o sistema ecológico circundante, pois cada casal de águias-harpia precisa de um território exclusivo de caça de cinquenta quilômetros quadrados, com incursões num raio de mais de trezentos quilômetros".

[...]

Pensava em tudo isso como justificativa do atentado que, piedosamente, queria cometer. [...] Recordou-se também da ética ecológica que reza: "bom é tudo o que conserva e promove a vida, mau é tudo o que diminui e elimina a vida". Até uma frase bíblica veio-lhe à mente: "escolha a vida e viverá".

Por todos esses argumentos convenceu-se de que não deveria sacrificar a águia. Decidiu preservá-la. Começou, então, a tratá-la com carinho.

Ela, porém, pouco reagia. Não procurava comida nem andava. Como era colocada, assim ficava. Sem luz e sem sol, a águia não é águia.

Todo dia o empalhador partia-lhe pedaços de carne e a alimentava com dificuldade. Depois de um ano começou a perceber que os seus sentidos despertavam para a vida. Primeiro os ouvidos reagiam felizes ao ruído dos passos, quando lhe traziam carne. Esticava a cauda, geralmente em forma de cunha, e abria as asas alegremente.

[...]

Depois começou a mover-se por si mesma. Andava pela sala e pelo jardim.  Postava-se sobre um tronco mais alto. Por fim, recuperou sua própria voz, o kau-kau típico da águia.

Mas, continuava cega. Os olhos são tudo para uma águia. Seu olhar penetrante vê oito vezes mais que o olho humano. A retina é em parte monocular, orientada para coisas de perto, e em parte binocular, dirigida para as coisas de longe. Vê e controla tudo porque consegue girar a cabeça em 180 graus. Discerne o focinho de um coelho que espia da toca ou uma gazela no meio dos arbustos a mais de 1.600 metros de distância. Então arremete como uma flecha.

[...]

Por fim, o empalhador decidiu colocá-la junto às galinhas. Uma águia não é uma galinha. Mas a galinha pode provocá-la para viver, para locomover-se e, quem sabe, para despertar em si a imagem das alturas e buscar, um dia, o sol. Quem sabe... os olhos poderão renascer?...

Mas há também o risco de a águia esquecer o céu e o vasto horizonte do sol e acomodar-se aos limites estreitos do terreiro de galinhas. Poderá comportar-se como galinha. Será que vai virar galinha?

E foi assim que a jovem águia continuou a ser criada com a galinhas. Durante dois anos circulava, cega, entre elas. Andava com dificuldade, pois suas garras não foram feitas para andar. Ciscava aqui e ali como fazem as galinhas, mas sem poder ver.

Eis que, um belo dia, o empalhador se deu conta de um milagre. A águia via. Sim, via e já distinguia os alimentos. Seus olhos eram enormes. Na verdade, eles são tão grandes como os olhos humanos, embora uma águia pese 28 vezes menos do que um ser humano normal.

Enfim, a águia estava curada e perfeita! Depois de três anos de paciente cuidado, ela recuperara seu corpo de águia. Contudo à força de viver com galinhas, virara, também ela, uma galinha. Vivia com as galinhas, ciscava com as galinhas, dormia no poleiro com as galinhas. O empalhador, ocupado em seu ofício de empalhar aves, já se acostumara com a águia-galinha entre as demais galinhas. Esqueceu-se dela."


[Leonardo Boff - retirado do livro "A águia e a galinha - uma metáfora da condição humana", páginas 52-59]

[Continua...]

*Retirados alguns trechos do texto original.
*Ênfases minhas.

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